São Paulo, setembro de 2009.
Maria de Fátima de Almeida Prado – fatima.prado@gmail.com

Para escrever este texto parti do impacto que senti ao ver as fotografias expostas nesta revista. É interessante como é difícil colocar em palavras o efeito provocado por estas imagens. Ainda assim aceitei o convite com entusiasmo, pois me senti profundamente tocada pela emoção ligada às vivências, às experiências e, certamente também, às ideias que pude captar na proposta do grupo.

As imagens são poderosas no sentido de reter algo do vivido. As imagens proporcionam um modo de acesso muito direto ao âmbito das emoções, recordações e experiências.

Somos sempre em um mundo, junto com os outros e junto com as coisas que nos cercam. Muitas vezes temos na memória apenas os vestígios de uma experiência que impregnou nossa existência. As imagens desta exposição nos remetem a esse olhar para o já sido, que vige no presente e abre o futuro. Somos temporais, no sentido mais originário desta palavra. Somos no tempo, lançados em um mundo, tendo que ser quem nós somos. Esta é a maneira de explicitar o ser dos homens de Martin Heidegger, filósofo alemão que viveu de 1889 a 1976. Seu legado é precioso. Seu pensamento é fecundo e hoje, mais do que nunca, comprovamos a veracidade de seu pensar, sua compreensão do modo de ser do homem cujo destino é existir como guardião do ser numa época de penúria e desabrigo, numa época de esquecimento do ser. Heidegger chamou essa época de época da técnica. O que caracteriza nossa época não é exatamente o avanço tecnológico no sentido de equipamentos, instrumentos, recursos sofisticadíssimos. O que caracteriza esta nossa época é que o próprio ser homem está sob ameaça, ele mesmo compreendido e compreendendo-se como mais uma coisa, mais um ente que funciona como uma máquina, seguindo o modelo mecânico (explicativo-causal), como objeto. Neste contexto tudo se mostra igualmente esvaziado num tédio profundo, numa velocidade angustiante, numa busca incessante pelo novo e apenas pelo mais novo …

A arte é de algum modo o espaço de reflexão e de libertação desta voraz movimentação. O olhar do artista nos convoca a rever e questionar nosso engajamento impensado neste movimento. Somos lançados em um mundo que nos convoca a responder sempre de modo alienado como se nada nos restasse, a não ser fazer como todo mundo faz.

No trabalho destes artistas há uma inquietação, uma provocação e um convite a que se veja de novo; que se olhe por novos ângulos, que se abra outra perspectiva. Neste momento, pequenas emoções, lembranças vêm à tona e toda uma época pode ser trazida de novo, revista, revisitada, revivida. Isto nos faz homens. O homem vive na temporalidade própria de seu modo de ser em que o passado nunca acaba de passar, o presente é o instante e o apelo do futuro pode modificar e re-significar tanto o passado quanto o presente. Assim é que somos históricos. Assim contamos nossa história e re-significamos as experiências vividas transformadas em bagagem. Por sermos históricos temos memória. Heidegger faz este tipo de inversão da lógica cotidiana: temos olhos porque vemos (e não a compreensão usual de que vemos porque temos olhos). Para o homem a compreensão é fundamental. Compreendemos sempre já numa disposição, numa afinação com o mundo; junto com a compreensão fundamental e a disposição básica somos linguagem. Somente com base nesta apreensão do ser homem como Dasein podemos descrever os processos de percepção, visão, memória. A fisiologia está assentada na ontologia. Toda explicação causal vem a reboque do fenômeno da existência mesma. O que queremos dizer com isto? A obra de arte, a imagem, a poesia são linguagem e têm verdade, abrem a compreensão do homem de uma maneira muito mais fundamental do que as pesquisas científicas por mais sofisticadas que sejam. Qualquer imagem é uma evocação, uma recordação? Parece que não. Estamos falando das imagens que reúnem um significado e evocam o acontecido com uma força própria. A obra de arte rompe com a significação cotidiana com a qual estamos acostumados e abre o espaço de reflexão. Os famosos tamancos do camponês, pintados por Van Gogh, não nos convidam a refletir sobre o objeto-calçado, mas sobre a vida do homem, a natureza que o desafia, o trabalho que o dignifica e ocupa; e ao descansarem ao lado da cama, nos remetem ao cansaço de um dia comum na vida de um homem comum.

Na foto feita por Maria Clara, em que vemos apenas uma parte de um vestido, somos remetidos ao olhar da criança. “Na barra da saia” de sua mãe está a ligação tão fundamental, onde a segurança está ao alcance da visão de uma figura que conforta e assegura simultaneamente o mundo e a vida da criança. Para a criança, nada disto está presente. As sensações se sucedem e mal ela consegue nomear seus medos, angústias, desconfianças, intuições. É, ela adulta, que pode rever o acontecido, resignificando sua experiência como o desamparo daquela época. Historia: o cuidado como o entrelaçamento de passado (o já sido) com o presente e o porvir.

No trabalho dos artistas desta exposição estes sentimentos aparecem traduzidos em imagens que falam do efêmero, do tempo que passa e do que passa com o tempo. Relações que se transformam, e deixam uma nostalgia da época em que havia alguém, um pai (fotos de Marcelo Greco e Flávia Tojal), capaz de garantir que nada de mal pode acontecer; que pode indicar sempre qual o caminho a escolher. As estradas de ferro, o trem da vida, para onde nos levam (fotos de Beatriz Pontes)? Que caminhos são abertos, que caminhos jamais encontraremos? Cada artista, de forma singular, própria, conta uma história, faz uma viagem para dentro de sua vida, traz das recordações uma marca de algo que foi vivido desta maneira única. O meu pai, a minha vida, a minha mãe. Pedaços de histórias que revelam algo de quem conta a história. Este ângulo e não outro; esta perspectiva, este jeito de olhar desvela o que é mais próprio, mais peculiar de cada artista. Esta singularidade é o que se busca. Ser único e não como todo mundo. Na vida cotidiana, trata-se de ser mais um, de ser como todo mundo. Que diferença aqui! Cada um é único! Cada um se expõe revelando aspectos únicos de sua fragilidade, de sua emoção, de sua força e inteligência. O conjunto do trabalho ganha um impacto, uma unidade também própria. Torna-se poético, reflexivo. Bem orquestrado, o grupo compõe uma sinfonia de imagens. Somos levados a um tempo fora do tempo cotidiano, fora da correria alucinada pelo novo compromisso: tempo das memórias afetivas. É o tempo em que houve encontros, sonhos, amores: o tempo em que vigora o sentido mesmo da vida. O sentido para o homem é o que sustenta toda a existência. A procura inquieta pelo sentido que torna cada um de nós singular e, ao mesmo tempo, parte de uma totalidade que zela pelo ser, pelo humano, por tudo o que é, perpassa por todos os trabalhos desta exposição. Assim como as imagens tão significativas destes trabalhos fotográficos, ouvimos também a palavra do poeta:

Acontece em Deus

Entre mim e a vida há uma ponte partida
Só os meus sonhos passam por ela …
Às vezes na aragem vêm de outra margem
Aromas a uma realidade bela;

Mas só sonhando atravesso o brando
Rio e me encontro a viver e a crer …
Se olho bem, vejo – pobre do desejo! –
Partida a ponte para Viver.

E então memoro num choro
Uma vida antiga que nunca tive
Em que era inteira a ponte inteira
E eu podia ir para onde se vive

E então me invade uma saudade
Dum misterioso passado meu
Em que houvesse tido um outro sentido
Que me falta p’ra ser, não sei como, eu.

Fernando Pessoa
26-11-1913

Maria de Fátima é psicóloga, membro da ABD (Associação Brasileira de Daseinsanalyse), tradutora do livro Seminários de Zollikon de Martin Heidegger – Editoras Vozes/EDUSF/ABD 2009.