Nascida em Belo Horizonte, em 1948, Ana Regina Nogueira, autodidata, fotografa desde a década de 70. Teve seu trabalho inúmeras vezes publicado pela revista Vogue, participou em 2002 da Fotofest em Houston, EUA, e este ano teve seu portfólio publicado pela Schoeler Editions (www.schoelereditions.com). Este último feito proporcionou o encontro desta artista com alguns integrantes do grupo Cenáculo, quando inspiradas conversas passaram a acontecer. Suas imagens exalavam a intensidade dos altos e baixos de um percurso vivido com entrega plena. Transformação a culminar em redenção, mérito dos que se empenham no caminho. Percebemos ali uma estreita ligação com nossas reflexões sobre memórias afetivas, crises e consequentes mudanças. Esta entrevista foi gentilmente concedida via e-mail, entre Julho e Outubro de 2009, e somos gratos pela oportunidade.
CENÁCULO: Ana, a origem do nosso interesse pelo seu trabalho nasceu do contato que tivemos com seu Portfólio. Foi um trabalho que nos impactou. Como você sabe, participamos de um grupo de estudos voltado para trabalhos autorais em fotografia e, como não poderia deixar de ser, gostaríamos de saber como você percebe a relação vida/obra ou, ainda melhor, como esta relação se dá com você.
ANA REGINA NOGUEIRA: O portfólio foi selecionado pela grande sensibilidade e conhecimento visual de Pierre Devin. Suas dezoito fotos sintetizam meu percurso visual entre 1972 e 2000. Pierre as selecionou das 160 fotografias de uma retrospectiva sobre minha obra, da qual foi curador, em um castelo transformado em centro cultural em Liège, na Bélgica, em 2006.
Nasci com a certeza, no coração, da fraternidade entre os homens. E a vida vem me lavando preconceitos e polindo o caráter para expressá-la através dessa linguagem nada estática, a fotografia. Há 46 anos a fotografia é a grande companheira que me impulsionou a conviver com qualquer um e todos e enunciar esse sentimento fraterno através da imagem. Lembro-me de uma época, lá pelos anos 80, que sonhava colher retratos de todas as faces que habitam nosso planeta, faces que exprimissem algo mais profundo que aparências, narizes, cabelo e bocas. Cada ser humano é um mundo, vive em um mundo influenciado por coisas externas (cultura, educação, genética), mas o principal está dentro, é algo invisível que nem mesmo ele conhece. Queria expressar o interno na foto. Com a câmera diante do olho ansiei pesquisar o que se passava dentro do pescador, do empresário, da criança, do grego. Tantas possibilidades!!
Sim, a relação vida/obra é indissociável. Ambas são movimento, caminho e busca que se inter-refletem. Refiro-me à vida e às obras do ponto de vista da consciência dos que almejam à transformação, à evolução. A Vida é surpresa infinita e as obras um exercício do criador para manifestar, no ínfimo que é uma fotografia, essa imensidade. Algo invisível nos rege, ou tenta nos orientar quando nosso livre-arbítrio o permite. Entrego-me a essas correntes de vida e clico quando algo dentro de mim avisa: clique agora!! E que alegria aquele momento do clicar, quando acreditamos que tudo está correto, que todo o possível sobre a situação fotografada foi representado naqueles décimos de segundo. Uma alegria instantânea.
Viemos à luz para descobrir, conhecer, aprender a servir. Dessa procura minha vida e imagens nascem e renascem para novas experiências do olhar. Até 2000, fotografei pessoas, seus cotidianos e entorno, em preto e branco. Hoje, sou guiada a fotografar digitalmente menos gente e mais natureza, as nuvens, o sol. Desperto os olhos para narrar outras claridades.
CENÁCULO: Como você falaria da experiência, que também nos aparece como inter-reflexa, dos mundos que estão para além da imagem e dos mundos que estão para além daquele que a observa? Como você se percebe na experiência de ser despertada pelo que está para além dos “narizes, cabelos e bocas”?
ANA REGINA NOGUEIRA: Ah… quantos mistérios a desvendar! Que sei, que sabemos? Mas pensarei a partir das desafiantes questões propostas… refletirei sobre o poder e o sentido da fotografia a partir de minha experiência criativa, espiritual e de vida.
Nesse final de ciclo evolutivo da humanidade vivemos ainda uma realidade dual. Oscilamos entre a luz e as trevas, o positivo e o negativo. Desse embate surgem crises que, quando nos abrimos para com elas aprender, passam a ser um importante instrumento de crescimento, de evolução.
Fotografo muito e não apenas para trabalhos profissionais. Ao fazer da câmera uma amiga, uma companheira constante, e da fotografia um diário sobre o caminho de descobertas, as fotos passam a espelhar os estados em que vivo. E evoluem segundo cresce minha consciência.
Nos anos 70 e 80 dancei e flertei com o abismo. Vivi um turbilhão existencial, que ora me remetia aos infernos, ora me elevava à superfície. Ora eu clicava sombras, ora me elevava acima das trevas e clicava a beleza das situações e dos seres humanos. Quando o viver se tornava uma tortura surgiam fotografias ásperas e feias, infelizes, ligadas à morte e à dor, como a do cão irado e as do ensaio “Noite Escura da Alma”. Essas expressam o pior lado do ser humano. Mas, sendo múltipla, na mesma época surgiam também outras visões, ternas, amorosas.
Por ignorância desviei da rota e mergulhei na proposta superficial de vida que a sociedade estimula e oferece como sendo o que há de melhor: viagens, prazeres, vícios, prisão ao mundo dos sentidos. Do fundo dessa escuridão, desse excesso de extroversão, pedi luz, ajuda. Livros começaram a chegar. Falavam de uma nova maneira de viver, da busca da essência, de sementes luminosas que germinam ocultas dentro dos seres humanos. Pessoas e grupos começaram a sinalizar um retorno à via reta e, aos poucos, mudei velhos hábitos, velhos padrões, e fui sendo invadida pela paz. Assim me entreguei a um caminho espiritual consciente e fui me afastando do torvelinho cotidiano.
E novamente a fotografia, essa companheira que narra minha vida até seu limite, ajudou a me salvar. Fotografei pessoas nas águas em que me curava: mar, cachoeiras, piscinas. Com essas imagens e outras antigas, que falam da relação de corpos com a água, fiz em 1991 a exposição que relata o início de minha purificação, desse poderoso momento de mudança no curso de minha história: “Olhos n’água”. Junto a esse despertar, a fotografia se tornava um instrumento consciente de serviço. Outra vez a inter-reflexão: a fotografia a refletir meu despertar, que se refletia na fotografia.
Nietzsche afirmou que temos de passar pelo turvo para chegar ao claro. Os alquimistas defendiam o processo de purificação da matéria, que passa por uma fase de nigredo, de chumbo, antes de atingir a albedo, a clara matéria luminosa, incorruptível como o ouro.
Minha vida é uma trajetória alquímica. A criação é um farol e um guia que me conduz ao encontro da visão interior. As imagens moldadas a partir dessas experiências internas, que estão além da mente, irradiam mundos que pulsam além do visível.
Em 1994, mudei para uma fazenda em Lavras e necessitei parar de fotografar. Nem sabia se algum dia voltaria a fazê-lo. Dediquei-me ao Reino Vegetal e a trabalhos voluntários em grupos anônimos e comunidades carentes. Para jorrar a criatividade me dediquei à poesia, que se transformaram no livro inédito “Aromas de Fogo”. Em 1999 recolhi imagens do passado e exorcizei-o através do ensaio “Noite Escura da Alma”.
Então parti, foto após foto, suavemente, a buscar um novo olhar inspirado na quietude e calma adquiridas. Voltei-me para a natureza, para a cor. Passei a olhar a fotografia de um ponto de vista diferente. Já não era mais a coisa mais importante de minha vida, mas um meio de expressão de algo mais profundo, claro, belo.
Como cada um de nós é uma célula do corpo chamado Humanidade, o outro, ao observar uma determinada imagem, responde à sua irradiação. Ele pode permitir que o visível penetre, através de seus olhos, até o ponto interno de onde a percepção do fotógrafo fez emanar aquela vibração. A foto tem o poder de manifestar uma realidade que está além da forma exterior.
Sei que tenho imagens que inspiram o observador e outras que o perturbam de forma negativa… Por que permito que fotos negativas, decadentes, sejam mostradas? Porque, em contraste com as mais elevadas demonstram, através de meu percurso de vida, que o crescimento da consciência dos olhos é possível. Que é preciso ver além da aparência e usar nossa criatividade para expressar o mundo interior.
Enfim… nessa edição falamos de memória, mas conectados ao novo, ao frescor do que se dá no momento do encontro com uma imagem.
A vida está no aqui, no agora. O exercício da fotografia nos permite treinar viver no presente, seja nos décimos de segundos em que clicamos, seja quando observamos uma imagem e a deixamos penetrar nosso coração. Assim que acaba de ser feita a foto vira passado, mas cada observador revive a imagem que, se não fosse por ele, se manteria semi-morta. O passado, ao ser revisto, se torna experiência presente e através dele podemos aprender, evoluir.
CENÁCULO: Também nos interessa ouvir mais sobre este fotógrafo que, no exercício do seu fazer, seria “coadjuvante” de uma obra que o transcende. Ouvir sobre um estado de disponibilidade, diríamos, no qual seria preciso estar para entrar neste canal, neste fluxo onde contatamos, em nós, o que está para além de nós.
ANA REGINA NOGUEIRA: Tudo está dentro de nós, em nós. E não além de nós. Conforme ampliamos nossa consciência através do estudo e da oração – conversas silenciosas com o Divino –, e contatamos aspectos mais profundos da Vida, aprendemos a expressar mais beleza. Cheguei a um ponto do caminho que percebi que a busca interna era mais importante do que a busca de fotografias. Já nem consigo fotografar a dor, o desequilíbrio e o caos. Hoje, busco fotos que expressem harmonia, amor, leveza, uma vida mais elevada.
CENÁCULO: Dualidades, consciência,… o caminho percorrido é sempre pertinente, o justo caminho que nos traz ao nosso aqui agora. Também a obra percorre seus caminhos, nos parece sempre uma busca justa de um momento de evolução de quem o faz. Trevas e luzes, planícies e montanhas são igualmente potentes e transformadores quando de fato estamos conectados a eles. Florzinhas e cães raivosos podem nos arrebatar, mas por vezes, no fazer, a potência da obra parece nos escapar. Guardamos uma frase, vinda de um livro de Matisse, que nos pareceu falar dessa potência. Ele coloca:
“Um músico disse: Na arte, a verdade, o real, começa quando não se entende mais nada do que se faz, do que se sabe, e resta em nós uma energia tanto mais forte quanto mais contrariada, reprimida, comprimida. Então temos de nos apresentar com a maior humildade, brancos, cândidos, a mente vazia, num estado de espírito como o da comunhão na Mesa Sagrada. Evidentemente, precisamos ter por trás toda uma bagagem e preservar o frescor do Instinto.”
Como ela chega em você?
ANA REGINA NOGUEIRA: Como soube esse músico expressar e Matisse registrar esse momento em que, parece-nos, toda a experiência já foi realizada, a técnica apreendida, os livros estudados. Então ficamos assim, pasmos diante do nada saber, do nada prever. Os compromissos acabam. Os conceitos se extinguem. Olhamos para trás e cremos que podemos parar de fazer, de criar. Mas não.
Aí começamos a fotografar como crianças. Ficamos simples. Descomplicamos. Passamos a amar mais. É como se um portal tivesse sido cruzado. Tornamos-nos um cálice aberto por onde o inesperado se despeja. É então que vemos asas de anjos e seres orantes nas nuvens. Se der para clicar, clicamos. Se não der, amém. A angústia se diluiu.
É nesse sagrado momento que a vida começa a virar arte. As relações com os outros e com os Reinos ficam mais puras e o coração, mais compassivo, aceita e inclui com tranqüilidade o que a vida trás. Sim, a partir daí vivemos com mais pureza e começa a nos ser permitido, apesar de perceber que nada sabemos, a comungar na Mesa Sagrada. Os músculos relaxam, a alma se expressa melhor, a respiração se acalma, os olhos cantam e agradecem.*