Chegamos ao atelier do Sérgio para uma entrevista em formato de conversa. No espaço, iluminado, referências afetivas, trabalhos de diversas épocas e as grandes telas em produção. Por duas horas ouvimos deste artista culto, atento e, acima de tudo, generoso, que não parece temer posicionar-se e que domina o discurso sobre seu envolvimento com a Arte.

A princípio, contamos sobre a proposta inicial do uso do termo estranhamento no intercâmbio “Strange Fruit” e comentamos sobre uma certa identidade cultural percebida durante nossa experiência na Holanda.

Selecionamos trechos. Boa leitura.

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SERGIO FINGERMANN: Estive na casa do Leo (Divendal) em Amsterdam, e acho até parecida com a casa do Marcelo (Greco) ou a minha. Acho que a gente têm referências, uma série de objetos que guardam uma relação afetiva, que têm uma espécie do que se pode chamar de estranhamento, um testemunho da singularidade do olhar. Imagino que os postais que ele têm, as fotos que eu vi na frente da estante de livros, que o tempo inteiro estão dando notícias de uma subjetividade, notícias das bases em que se dá o olhar daquele fotógrafo.

CENÁCULO: que é um arqueólogo, um colecionador…

SERGIO FINGERMANN: Diria que, em geral, prefiro me relacionar pensando que tenho na frente um artista, que circuntancialmente está escolhendo uma linguagem para apresentar o trabalho, seja a fotografia, seja o desenho, pintura, escultura, etc. Então, o que entendo que você esteja dizendo é que essas notícias – o ‘estranho’-, podem ser portas de entrada a uma subjetividade. No caso esse recorte afetivo do mundo que se encontra em um atelier, as referências que habitam um espaço de reflexão, o espaço de contemplação de um artista, elas estão lá para de alguma maneira potencializar a rotina de trabalho dele. Então se você me pergunta porque no meu atelier tem um azulejo que encontrei em uma determinada circunstância, um fragmento de arquitetura, uma pedra ou mesmo um outro objeto de arte, acho que de alguma maneira eles estão ali, não por uma questão lógica, mas para criar uma espécie de estímulo visual, poético, que é da ordem do estranhamento.

(…)

SERGIO FINGERMANN: Acho que qualquer artista vai trabalhar para produzir um acontecimento. Acho que um trabalho é tentar captar o olhar para um acontecimento plástico, vamos chamar assim, de uma maneira geral. Este acontecimento está entre o que ele anuncia, que seria o tema, e a própria natureza de isso acontecer, que é a fatura daquilo, seja no desenho, pintura, na fotografia e a relação com a linguagem. Então, é uma proposição e ela tem a ver com uma desestabilização, com uma desordem. A desordem faz parte do processo criativo para que a gente consiga ver diferentemente do que normalmente a gente vê. Você precisa do estranhamento como uma desestabilização. São elementos básicos para que qualquer pessoa que trabalha com criação pode produzir o extra ordinário, o incomum. Esse é o território que a gente propõe como travessia. Eu imagino que seria interessante falar o que sempre se fala – não estou falando nenhuma novidade. Cada artista fala a mesma coisa nesse sentido.

Agora, é curioso numa exposição coletiva: imagina-se que seja preservada a singularidade de cada participante, mas há também o conjunto. Ela tem uma proposição, que é sempre estranha, que pode ou não estar na obra de cada um e uma totalidade dos trabalhos vai falar também, vai apontar. Vai ser uma surpresa provavelmente pra vocês na montagem isso (se referindo à exposição do espaço Contraponto, Formas Curiosas de Respirar). Por que por mais que…

CENÁCULO: …que acredite que sabe o que vai ver, quando a realidade se coloca…

SERGIO FINGERMANN: Quando você levanta a exposição na parede, e ela interage com o espaço, aparecem sempre elementos surpresa que escapam a uma intenção. Isso é o mais gostoso, o mais rico da experiência. Por isso falei que é da ordem do desconhecido.”

CENÁCULO: Poder ser surpreendido.

SERGIO FINGERMANN: É. E ela pede e exige que a gente tenha esse olhar aberto pra que isso aconteça.

CENÁCULO: A exposição tem um nome, você sabe? ‘Formas Curiosas de Respirar’.

SERGIO FINGERMANN: Curioso. Essa provocação tem um porquê?

(Contamos que pinçamos o nome de um capítulo do livro ‘Would you believe it’, parte das propostas inspiradoras que Leo enviou para trabalharmos o ‘estranhamento’.)

SERGIO FINGERMANN: Acho que é uma provocação poética. Enuncia alguma coisa mas ao mesmo tempo este enunciado não se explica, não se fecha em entendimento. Esta operação de não se transformar em entendimento, desse adiamento, é essencal nas questões artísticas. Acho que a arte é, de alguma maneira, apresentar isso como território de investigação. Um tempo dilatado onde as coisas se mostram como acontecimento escapando ao senso comum. A poesia opera desta maneira, ela associa palavras pelo transbordamento do significado da palavra, não na contenção. O fenômeno poético acontece aí. É mais poético imaginar falar: céu amargo. Quero dizer que o adjetivo amargo parece inadequado pra qualificar um céu porque é uma experiência gustativa, mas nessa junção provoca uma espécie de desdobramento, de ondas. Permite o abrir de um plissado de um tecido para enteder a urdidura desse tecido. Esta operação é essencial da Arte: no estranhamento, na surpresa, na inadequação de uma junção de uma coisa com outra há um acontecimento propositor.

(…)

CENÁCULO: No passado, quando apareceram os expressionistas, por exemplo, eles não foram aceitos nas feiras

SERGIO FINGERMANN: Mas ali não era a imagem, era a imagem como processo. Quer dizer, eles foram incluídos cedo, a obra circulou até que muito rapidamente no século XIX. Mas acho que eles colocaram como questão não só a imagem mas o que produz a imagem. Há uma espécie de desconstrução do olhar. Eles apresentaram a coisa a ser vista e ao mesmo tempo buscando o instante que ela acontece ou a somatória de ações para fazer uma coisa ser vista. A pintura trouxe, naquele momento, com maior clareza, noções de tempo e de espaço. E nunca mais estas questões se afastaram da experiência visual. Ela é uma experiência inaugural, neste sentido, por ter achado um artifício, uma estratégia, pra trazer essas questões.

CENÁCULO: Mas como seria se hoje em dia alguém viesse com uma proposta inteiramente nova …

SERGIO FINGERMANN: Acho muito difícil dizer o que seria novo hoje.

CENÁCULO: Algo que trouxesse estranheza…

SERGIO FINGERMANN: Tentaram de todas as maneiras. Hoje seria muito difícil – sinto um esgotamento dessa preocupação, não tem mais o sentido da novidade. O que hoje é fundamental, a meu ver, seria a questão da espessura. Da espessura humanista que o trabalho tem que ter. Uma proposição. Não consigo achar que um trabalho que seja totalmente ituitivo possa trazer isso. O artista tem que cada vez mais conceituar, é difícil ele abrir mão. Têm que estar mais conectado com as questões artísticas, as questões da cultura, as questões humanas.

CENÁCULO: E você acha que uma convergência de meios facilita isso? (E cita como exemplo um trabalho exposto na Bienal onde a obra era composta por pintura, fotos e vídeo sobre o processo.)

SERGIO FINGERMANN: Convergências de linguagem, de recorrência…

CENÁCULO: Especialmente o trabalho de telas feitas com àgua do mar, se não tivesse o vídeo eu jamais saberia…

SERGIO FINGERMANN: Mas será que isso é relevante? E se eu te dissesse que eu pintei isso com pincel Tigre número 18? Será que é relevante?

CENÁCULO: Eu acho que é um pouco diferente…

SERGIO FINGERMANN: Será? Eu vou pegar um artista… o Vik Muniz, eu entendo a obra dele como um cara que esteja tratando de imagem a partir de segunda, terceira geração de imagens. O fato de o Vik Muniz me dar para ver uma imagem através de uma associação de lixo, de tecidos, de chocolate, caramelo para mim não é relevante, é uma questão de artifício.

CENÁCULO: … é uma sacada.

SERGIO FINGERMANN: E depois, o que o ele faz é uma documentação disso. Então o trabalho dele está tratando de uma espécie de derivação.

CENÁCULO: É, talvez essa palavra…

SERGIO FINGERMANN: As coisas surgirem pela derivação, onde a origem do ato esteja distante. Então nesse sentido ele não é um artista que, pessoalmente, me interesse. A maneira de ele discutir o ato artístico, as questões que eu entendo que o trabalho dele abordam, não estão no meu horizonte de interlocução. Entendo, e ao menos tento localizá-lo, como eu expliquei. Não tenho nada contra, mas não é um artista que fala coisas que me interessam. O impacto das obras dele é muito mais da ordem do artifício, do artificioso, do que do essencial. Então por isso que me interessa menos… Então voltando, não vi esta obra que você me descreveu… Mas para produzir alguma coisa que é da ordem da contemplação e muito sutil, uma experiência de contemplação, na vida contemporânea a gente é pouco convocado pra essa tal…

CENÁCULO: Não dá tempo ou a gente não dá tempo pra isso…

SERGIO FINGERMANN: O tempo da pintura está cada vez mais raro. Tanto o tempo para fazê-la, para executar uma pintura… posso dizer por mim, por que estou batalhando e ultimamamente estou assustado com isso. Então talvez eu esteja condenado ao desaparecimento mesmo. As pessoas quase não tem mais esse tempo para poderem se entregar a uma experiência e, vamos dizer, elaborar o que essa experiência oferece. As coisas estão funcionando muito mais na ordem do espetáculo e em uma urgência, ou seja, você vê rápido; é ser convocado para uma coisa que é muito da ordem do sensorial. (…) Quer dizer, não consigo tratar, no caso a pintura, como uma coisa que acontece somente na minha retina. Ainda acho que preciso que haja uma elaboração da contemplação, de ser capturado por uma sensação e transformar a sensação em pensamento. Acredito que a função da Arte seja ajudar essa operação. Os artistas não podem parar antes. Eles têm que ajudar – é uma postura. O clube que pertenço é de artistas que têm esse pacto, seja no testemunho de sua prática, seja no próprio trabalho. Não precisa ter uma bula, mas essa operação, esse testemunho, é fundamental para tirar a Arte de um lugar que ela entrou nos últimos setenta anos de uma forma patológica, uma tendência ao autismo. Para voltar ao atismo isso é fundamental. Fui claro?

CENÁCULO: Claro sim, mas só não entendi: 70 anos? Não apareceu nada?

SERGIO FINGERMANN: Não estou generalizando. Ela tem uma tendência autista que vem do pós- guerra, não é por acaso. Vem depois de uma falência de um projeto humanista do século XX, numa avalanche de experiência artística que se dá muito mais na ordem do estatuto da arte- que é arte conceitual-, do que fundada em uma experiência do ato artístico, que coloco em outro lugar. Então, é complicado, mas acho que localizei.

CENÁCULO: Claro, bastante.

SERGIO FINGERMANN: Falei muito, não?

(…)

SERGIO FINGERMANN: É sonegar uma coisa que a gente procura. Isso acho uma coisa interessante de falar em arte: a sonegação do entendimento, do esclararecimento.

CENÁCULO: E a gente pode falar estranhamento?

SERGIO FINGERMANN: Não, não. Isso é o que causa o estranhamento. Exatamente por que você não entrega em esclarecimento, em entendimento, você fica em um território que é do estranho, que te escapa. É como acordar em um país em que todos falam outra língua e este esforço de tentar entender, de se fazer entender, de entender o que seja comunicação, isso é uma condição que fascina. Aliás a gente viaja pra isso, pra ter uma experiência…

CENÁCULO: Então o estranhamento com certeza é passageiro.

SERGIO FINGERMANN: Ah… sim, você não habita nele. Tem uma hora que você vai dominar a linguagem do estranho. Tem que sempre se deslocar.

CENÁCULO: E até que ponto o artista tem que explicar esse estranhamento.

SERGIO FINGERMANN: Acho que é a obra. Não tem que explicar. Ele tem que oferecer isso, o acontecimento é esse. O acontecimento de uma obra é a posibilidade que a presença dela provoca. Se leio um conto da Clarice Lispector, são os desdobramentos desse conto na minha alma, e não o estranhamento que ela descreve. É um outro lugar. O estranhamento é só um artifício que ela usou. Se a personagem tem uma relação com uma barata, e ela experimenta o horror da barata de diversas formas até que ela come a barata, ela põe pra dentro. Uma metáfora das diversas maneiras de se relacionar com a coisa. Isso é Clarisse, aquela artista que vai fundo. Ela não me apresenta só sensorialmente o horror da barata, ela tenta dar nomes a isso, ela tenta investigar o que está por trás disso.

CENÁCULO: Lançar possibilidades para você se relacionar com esse ‘isso’ que não é aquela barata, mas é um ‘qualquer coisa’.

SERGIO FINGERMANN: Qualquer coisa é o horror que não está fora, está dentro. Acho que desta é ordem que entendo.

CENÁCULO: Hoje, vindo pra cá, ouvi numa rádio uma matéria sobre o Gabriel Garcia Marques, dizendo que uma das coisas que mais o impressionou foi a leitura do Kafka, o um dia acordar se dando conta de que tinha se transformado naquele inseto monstruoso e diz que naquele momento ele se deu conta de que os personagens dele podiam transcender uma realidade conhecida. Aquele foi o estímulo pra ele criar esse realismo fantástico.

SERGIO FINGERMANN: A gente percebe que há uma espécie de porosidade para o narrador da experiência – o território dele é essa porosidade. O narrador não narra a coisa narrada. Ele vai e vêm, ele dá notícias de um mundo. Alice no País das Maravilhas: é cair naquele poço, essa subversão. Por isso falei porosidade: ser levado por uma capilaridade a uma outra superfície. Acho que existem muitos planos. Essa capilaridade da imaginação nos leva… a gente precisa fabular. É próprio do ser humano – se não o concreto te deixa cego. Não é o concreto, não é uma imagem do real que interessa.

CENÁCULO: Tem uma passagem do Gaston Bachelard que adoro, ele fala do momento em que o leitor tira os olhos da folha, tira os olhos do que ele está lendo e…

SERGIO FINGERMANN: …E vê.

CENÁCULO: E em si, na sua fantasia, no seu universo…

SERGIO FINGERMANN: Isso que é fantástico. A capacidade que a escrita tem de fornecer imagens. E que é a pintura te levar, o concreto. O físico de uma pintura é um pano sujo de tinta distribuido de tal maneira que o que vejo, vejo no esquecimento do que aquilo é. Então eu acho que isso é fundamental. Um esquecimento fundamental para poder ver além de. Acho que é isso.

CENÁCULO: E muitas vezes se pensa o contrário, que é a lembrança que faz ver.

SERGIO FINGERMANN: Mas pode ser o esquecimento também.

(…)

SERGIO FINGERMANN: O espectador está abandonado. Desde o século XX, com as vanguardas, foi necessário chacoalhá-lo, subvertê-lo, questioná-lo, mas acho que o chute que deram na tradição acabou sendo como jogar a água do banho junto com o bebê. Você começa a deixar as pessoas em desamparo. Começaram a perder as referências que elas tinham. Durante séculos praticamente não houve uma evolução na maneira de ver arte. Se você olhar o Renascimento, o Clacissismo ou o Barroco, o Realismo… toda a evolução, a maneira de ver Arte era mais ou menos igual. Claro que tinham acontecimentos, mas subverteu quando, no século XX, chutou-se o pau da barraca e, seja em Duchamps ou nos cubistas, subverteu-se aquilo que era visto e tranformou-se o ver em acontecimento – aumentando aquilo que o Impressionismo tinha feito exponencialmete. E aí entrou no processo a idéia de uma expansão de um conceito do que seja Arte, como esfera do interesse. O Academicismo virou um pouco isso. Oficialmente a Arte que ficou é a Arte como noção de limite do que seja Arte. Como se fosse uma expansão, uma bolha e em que momento essa bolha estouraria. Como se a Arte tivesse ficado muito normativa, estatutária. As vanguardas, paradoxalmente agora, têm um caráter conservador, estatutário, de regulamento… se eu paradoxalmente, comecei falando que Arte por muitos séculos não tinha trazido uma idéia de evolução, no século XX eles aceleram a idéia do conceito do que seja Arte, até buscar o momento de ruptura. Ah, daqui pra cá, isso é fronteira. Aqui é mundo, aqui é Arte. Os artistas entraram muito nesse processo. Para o bem e para o mal. E às vezes é preciso colocar o pé no freio e dizer: ‘têm questões que não são mais interessantes’. Em geral as questões estatutárias, particularmente, me interessam muito menos. Elas têm uma forma hoje do academicismo contemporâneo, artistas que trabalham nessa direção e isso é um pouco monótono, chato.

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