outubro de 2008

Nascido em Vogelenzang, Holanda, em 1955, Machiel Botman começou a fotografar muito jovem. Não trabalha comercialmente com fotografia. Publicou seu primeiro livro Heartbeat em 1994, seguidos de Rainchild (2004), Drifting (2005) e Menabo (2006). Em setembro de 2008 veio ao Brasil para participar do 4º Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco. Na ocasião, além de apresentar uma exposição individual, ministrou um workshop – no qual alguns integrantes do grupo Cenáculo tiveram a oportunidade e o prazer de conhecê-lo. Esta entrevista foi realizada por e-mail em outubro de 2008.

Cenáculo: Durante o seu workshop no último Paraty em Foco, você disse que, de muitas maneiras, você fotografa a si próprio, e que seus livros tratam do seu mundo particular. Poderia nos contar um pouco mais sobre esta experiência? Qual é o compromisso que um artista tem que ter consigo mesmo para trabalhar desta maneira? 
Machiel Botman: Olhe para isto como um diário em constante mudança. Hoje, quando olho para minha produção de trinta anos nas folhas de contato, vejo a mim mesmo e o meu mundo. Os relacionamentos, os amigos, os lugares onde estive, onde trabalhei, para onde viajei, quem eu conheci. O que mais vejo é uma vida em transformação. Sempre fiz auto-retratos. Olhando para dentro de mim consigo ir do início da minha vida até quem sou hoje: difícil explicar o que isto significa. Hoje posso ter menos convicções sobre certos assuntos do que no passado, ou vice-versa. Nos contatos eu vejo pessoas saírem da minha vida. Por muitas razões: porque morreram, amizades que mudaram, porque me retirei da vida delas. Às vezes não é fácil olhar para isso tudo, a vida é difícil neste sentido. Mas ter isto em imagens é como ter um tesouro. Tenho um entendimento comigo mesmo: porque mudo com o tempo, sempre me volto para o meu trabalho com olhos diferentes. Quando você é honesto consigo mesmo, você sabe bem se seus motivos estavam certos ou errados, ou indefinidos. O que você vê, você sente nas próprias imagens, e isto é o que dá sentido à coisa toda. Se não tem isso, será muito difícil aprender qualquer coisa que seja. Sobre as limitações de trabalhar desta maneira: eu nunca evitei confrontos, mas às vezes o foco é “continuamente exagerado sobre mim mesmo”. Talvez nem sempre me considere assim tão interessante. E isto em parte faz com que eu mergulhe muito no trabalho de outros fotógrafos e pintores. Amo os bons livros, aqueles em que os autores de fato fizeram um objeto de arte, não simplesmente um documento. Creio que foi a partir deste meu interesse que comecei a fazer a curadoria de exposições fotográficas. As últimas duas aconteceram neste ano: Miyako Ishiuchi para Langhans Gallery em Praga, República Tcheca, e Kiyoshi Suzuki para a Noorderlicht Gallery em Groningen, Holanda. É bom me afastar do foco de atenção para voltar-me ao trabalho alheio e também acho mais fácil defender a produção do outro. Aliás, recomendo fortemente os livros feitos com estas duas exposições. Tenho muito orgulho deles.

Cenáculo: Você disse que aprecia “o lado obscuro de nós mesmos”. Que relações existem entre isto e o livro no qual está trabalhando no momento?
Machiel Botman: O que disse sobre nossos lados obscuros tem a ver com nossa conversa sobre imagens obscuras, digamos borradas ou desfocadas. Desde o início, nunca pensei que uma imagem tem que ser nítida, clara, em foco. Mas me tomou certo tempo para descobrir o porquê disso. Antes, simplesmente gostava mais de imagens nebulosas. Mas agora é diferente. Muitas vezes estas imagens se conectam melhor com o que acredito ser a vida: certamente algo em movimento, ou que nunca está acabado. Gosto de perguntas, mas as respostas me interessam apenas até certo ponto. Elas sempre podem mudar segundo as personalidades, as circunstâncias. Aliás, para mim, uma imagem borrada pode ser extremamente clara, no seu sentimento ou sentido. Sobre o livro que trabalho agora: sinto muito mas não quero falar sobre ele ainda – apesar de já ter mostrado bonecos. As palavras podem ter o terrível efeito de tentar “corrigir” algo, e quero me manter distante disto, principalmente em relação ao meu trabalho.

Cenáculo: Neste sentido, como você vê a fotografia no geral: é uma arte que expressa o que está “lá fora” ou dentro do ser que fotografa e depois tem de lidar com o que fotografou? Isto vale para todo mundo?
Machiel Botman: Obviamente, para mim são as duas coisas: o que está lá fora tanto quanto o que cada um de nós tem dentro. Por exemplo, Philip Jones Griffiths fotografou a guerra do Vietnam e publicou seu excelente livro Vietnam Inc. Ele fotografou o que estava lá, mas depois criou um contexto fantástico para o livro. E não apenas fez aquele livro, mas dedicou muito tempo da sua vida para o que aconteceu naquele país, tendo recentemente publicado seu Agent Orange , livro que lida com os anos que seguiram a guerra, com os efeitos que o combate teve sobre o povo. Ele tinha tudo isto dentro dele e as razões que fortalecem seu trabalho não são apenas as imagens, mas sua forma de esclarecer o contexto, ou criar o contexto. Quando Philip faleceu, pouco tempo atrás, perdemos de fato alguém importante. Penso que isto vale para todo mundo. Provavelmente é disto que gosto mais na idéia de dar workshops: achar a chave de cada participante, ajudar com esta questão que sempre retorna – a de ter confiança na sua própria pessoa, sua própria personalidade, sua própria vida. Acredito também que as pessoas que estão começando a fotografar têm como missão conquistar este tipo de confiança, que não se trata de dominar a técnica de fotografar, mas de trabalhar a partir da pessoa que se é. 

Cenáculo: O que é fotografar? É tirar fotografias? Quando ou onde você acredita que o trabalho de um artista se concretiza, finaliza?
Machiel Botman: Acredito que tem a ver com estar em contato com si mesmo, seja através do ato de fotografar, escrever ou pintar… Só assim você poderá de fato pedir que o outro se doe para você, o que em diversos sentidos é o cerne da fotografia. Para mim, fotografar é se fazer perguntas o tempo todo. E, de novo, talvez o importante não sejam as respostas, mas mover-se dentro desta sensibilidade, desta tentativa de abertura. Quanto à segunda parte da sua pergunta: eu morreria se pensasse que algo está definitivamente acabado.

Cenáculo: Você também nos contou que está sempre “retirando” imagens da sua caixa (ou livros da sua estante). Em outras palavras, que está sempre ocupado em manter as imagens significativas. O que é uma imagem significativa para você? É sempre significativa ou torna-se significativa num contexto e não em outros? Existem imagens que você considere eternamente significativas?
Machiel Botman: Sim, são as imagens significativas que são as mais queridas para mim. Mas isto é tão subjetivo. E pode sim mudar, como num contexto em transformação: eu não penso que exista alguma regra, apenas tentativas. Obviamente, ao fazer um novo livro você deve ser cuidadoso ao usar imagens que já estão em um prévio. Mas às vezes é bom criar uma ponte entre dois livros através de uma imagem, ou você tem sempre a impressão de que certa imagem não caiu bem, então você deve tentar usá-la novamente. Tenho imagens que sempre se mantêm importantes, como também vejo imagens de outros fotógrafos desta maneira. No livro Ravens de Fukase , tem uma imagem de uma mulher grande nua. Acho que nunca me esqueci dela. Significativo para mim são muitas coisas e muitas coisas numa só imagem. Uma imagem deve ser um auto-retrato no sentido de que nós reconhecemos o fotógrafo. Isto tem que ver, normalmente, com o estilo, mas acho mais interessante quando é sobre um sentimento, sobre algo que está “escondido” na imagem. Gosto de imagens belas. Creio na beleza. Creio que ela se comunica bem comigo. Mas minha idéia de beleza talvez seja diferente da sua: penso que existe beleza absoluta nas fotografias do Café Lehmitz de Anders Petersen, seu famoso trabalho dos anos 70 . Mas já ouvi alguém dizer que as acha feias.

Cenáculo: Seus livros levam em torno de 10 anos para ficarem prontos. Como você trabalha por tanto tempo em um projeto – como é o processo? Soubemos que desde o Paraty em Foco (setembro, 2008) você já preparou dois bonecos de um novo projeto até agora (outubro, 2008). Isto mostra enorme dedicação para o seu próprio trabalho. O que pode nos contar sobre a dedicação que um artista deve ter com seus próprios projetos? Planejar uma exposição toma muito tempo? Por quê?
Machiel Botman: Somente Rainchild tomou 10 anos, não vamos exagerar. Heartbeat , meu primeiro livro, levou apenas três anos. Entretanto, eu realmente gosto de ter tempo, gosto dos meus dias trabalhando no layout, escrevendo, pensando, tanto faz. Antes do computador eu ia de bicicleta até uma copiadora às vezes cinco vezes por dia. Para mim, é ainda difícil revisar um livro inteiro no computador, preciso colocar as páginas no chão. Produzir bonecos é adorável – eles são os objetos que permanecem com você pelo resto da sua vida – existe um sentido de liberdade nisso, porque você pode tentar de tudo, fazer de tudo. É uma forma de me empurrar, às vezes, para mais longe do que eu sabia que poderia ir. Em Rainchild você encontra uma página com 12 títulos dos bonecos que fiz para este livro, o primeiro se chama EMU (como o pássaro da Austrália), o último chama Rainchild. Entre eles há, por exemplo, Time to Play ou Innamincka. Faz muitos anos que os fiz, mas me lembro muito do que senti ao fazê-los. É verdade, fiz mais dois bonecos desde que voltei do Brasil, adicionei imagens e mudei o tamanho do livro, as dimensões em particular. Quando eu voei de volta para a Europa trabalhei no avião e também durante as 3 horas de espera em Paris, somente porque é algo que gosto de fazer. No meu caso é mais sobre gostar de fazer isto, do que a mórbida palavra dedicação. Não vamos nos levar tão a sério.

Cenáculo: Você tem a mesma reação com a palavra “disciplina” ou você acha que todo mundo precisa de disciplina para trabalhar no próprio projeto?
Machiel Botman: A alusão à palavra disciplina é estranha para mim, desculpe. Não precisamos disto se o que fazemos tem um real sentido. Daí nos movemos sem questionamento, certo?

Cenáculo: O que significa dizer que você gosta de conhecer pessoas que gostam do seu trabalho “pelos motivos certos”? Quais são essas razões?
Machiel Botman: Me desculpe. Não me lembro a que isso se referia.

Cenáculo: Se me lembro bem, foi quando em Paraty, você falava um pouco sobre a parte comercial da fotografia artística… Talvez estivesse se referindo às pessoas que compram suas fotografias ou seus livros… ou talvez às pessoas que colocam boas questões…
Machiel Botman: Não tenho certeza que era em relação ao comércio de arte. Talvez era sobre isto: gosto quando as pessoas têm seu conjunto de razões próprias para gostar de um trabalho. Em outras palavras, que eles gostem por seus próprios bons motivos. Por exemplo, Heartbeat (o primeiro livro de 1994) é parcialmente sobre a morte da minha mãe. Obviamente isto é muito, muito pessoal. Acho que precisei tocar no assunto, mas também para me desapegar dele. Muitas pessoas se aproximam de mim por conta disso e toda vez sinto algo de similar na reação: que algo tão pessoal pode também ser algo muito universal. Isto pode levar a momentos surpreendentes. Recentemente uma amiga de Viena me mandou uma fotografia, um retrato que ela tirou de sua mãe, logo depois que seu pai faleceu. É uma linda imagem, a mãe está olhando para sua filha com lágrimas nos olhos, com tristeza, e ela se entrega totalmente para a filha, é tão real. Escrevi para ela e disse que ela será feliz com esta foto pelo resto de sua vida. E sei que as razões pelas quais ela me enviou aquela imagem estão relacionadas com a minha escolha de fazer Heartbeat, quase 18 anos atrás. Tem algo de muito reconfortante na recorrência destas relações.

Cenáculo: Você nos disse durante seu workshop que como Rainchild, seu novo livro também terá fotos de viagens que fez pela Austrália. Pode nos contar se há alguma diferença entre o seu processo de fotografar durante viagens e quando você está no seu ambiente conhecido, seu lar? Você acha que um fotógrafo pode alcançar a mesma potência na conexão, a mesma expressão potente em um lugar novo/estranho? Você também nos contou que fez fotografias em Paraty, Brasil. Como elas saíram?
Machiel Botman: Um equivoco: não tem fotos da Austrália no livro novo. Não estou dizendo que não poderá ter, mas até agora não tem uma sequer. Mas acho que há pouca ou nenhuma diferença entre trabalhar em casa ou em outros lugares. Meu trabalho nunca é sobre o lugar, o tempo, a pessoa. Freqüentemente não há como fazer idéia de onde as fotos foram feitas. Só preciso ser tocado pelo lugar, pelas pessoas, por algo. Isto me fará fotografar. Infelizmente minha estada em Paraty foi muito curta para algo além de “estar” no festival. Fotografei um pouco no início das manhãs, logo que a luz começava a aparecer, mas ainda não vi as imagens. Eu fiz uma linda imagem de dentro do carro da Marie [Hippenmeyer, fotógrafa com trabalho publicado nesta edição de Cenáculo] quando íamos de São Paulo para Paraty. Provavelmente para você ela será a mais comum das imagens, que você já viu muitas vezes. Tem uma enorme presença de árvores no novo livro, e esta imagem se encaixou perfeitamente. Não significa que ela permanecerá nele – nunca significa. Para mim ela fala sobre o momento de transição, neste caso da ida da Itália para São Paulo, ficar lá por apenas uma noite e cedinho, numa linda manhã, ir para Paraty. Adoro estes momentos quando o seu corpo está ainda tão cansado, seus pensamentos desconectados e esta paisagem desconhecida lhe segue no carro. Não há nada enraizado ali, você está definitivamente flutuando. Daí você vai cada vez mais ao alto das montanhas e vem a luz. Como o abrir das cortinas de um teatro. E lá estavam elas: uma árvore, duas árvores, três árvores – a última quase invisível por conta da neblina. Eu não tinha visto a terceira árvore até ter o filme revelado. Tem algo sobre magnitude ali, algo que ainda preciso compreender. Talvez por causa do carro em movimento, talvez por causa da luz que se movia, talvez por que este encontro durou menos de um segundo.

Cenáculo: Qual a relação que você vê entre as respostas que você nos deu e a forma com que começou a fotografar, aos 8 anos de idade?
Machiel Botman: Acho que tudo começou como uma brincadeira. E devo dizer que gosto mais de fotografia quando ela ainda é isso. Gosto da curadoria de exposições, mas às vezes os diferentes interesses das diferentes partes envolvidas podem tornar tudo muito complicado. Este não é muito meu lance. Os melhores encontros em fotografia são com aquelas pessoas que não se levam muito a sério, que são abertas a fazer de tudo, sem julgamentos. Catherine Duncan era uma dessas pessoas; escrevi sobre ela no boneco de retratos do Rainchild. Percebo que isto diz também algo sobre mim, o fato de preferir este tipo de gente; talvez eu nunca tenha crescido! Rá!

Cenáculo: Se nos permite uma última questão, qual é para você a importância de uma revista eletrônica de fotografia e arte como esta (Cenáculo), colocando perguntas como estas, para o mundo da fotografia?
Machiel Botman: Você me perguntou muito, e sempre tenho medo de blá-blá-blá. Uma boa imagem fala por si só e um contexto forte faz o mesmo. Então eu tendo a tremer um pouco com todas as palavras e explicações. Freqüentemente me pergunto por que eu tive que explicar qualquer coisa. Mas eu vejo sim as possibilidades de um diálogo aberto. Realmente gosto é de quando uma publicação como esta pode ajudar a dar confiança aos fotógrafos. Isto para que eles possam realmente fazer muito por eles mesmos: fazer duas cópias de um (boneco) livro, uma para você, outra para outra pessoa, é tudo o que você precisa fazer, para aprender e para ter algo a mostrar. Então eu gostaria de ver uma publicação dar sustentação a este mundo, ao mundo do progresso, ao mundo da tentativa. Isto seria muito importante para mim. Por que no fim das contas acredito que o mundo real não fica muito distante de tudo isso.

Cenáculo: Muito obrigado, Machiel, por esta entrevista! De fato fizemos muitas perguntas e você respondeu a todas com cuidado. No fim das contas, fica, entretanto, uma sensação sobre o conteúdo do que você escreveu: uma sensação de que você na verdade não gosta de dar entrevistas. E isto dá ensejo a uma última pergunta: essa sensação faz algum sentido?
Machiel Botman: É verdade até certo ponto. E fico basicamente ainda muito surpreso quando as pessoas gostam do meu trabalho, não sei. E quando a conversa vai para isto, o quanto meu trabalho é importante para elas, eu fico tímido. E quando a conversa vai para a teorização da arte, etc., começo a pensar sobre outras coisas. Tudo isso sempre me faz imaginar se sou a pessoa certa, para dar workshops, para fazer exposições, para ser entrevistado.