Fortaleza, julho de 2010
.olá, b.
.hoje choveu bastante logo cedo de manhã. o barulho da chuva caindo os carros decalcando o asfalto molhado o som da umidade que alarga os corredores da casa – até deixar tudo submerso e atônito.
.é um bom dia pra encher as paredes de música e atravessar as vontades preguiçosas. lá fora minha cidade (que já foi tua) conversa com suas paisagens em permanente transformação. posso calçar os velhos tênis cheios de marcas de tropeços e atritos como corpo de contato entre memória e ato. posso partir a pé pelas ruas até ouvir a polifonia imprecisa da voz da cidade me dizer que talvez tu também caminhes agora sobre os ruídos em direção ao algum. posso me deter na esquina até a quina do peito arder inteira com uma vontade eleita. de olhos fechados para ninguém notar: fotografando segredos de ar e fuligem – pra te mandar junto daquela receita de dia amanhecido com chuva. frio e langor.
.enquanto isso tu podes estar tomando um café diante dos dias. juntando as partes imensas daquilo que andas dizendo e sentindo. ou mesmo partindo no entre do estar – intenções e acordos nem sempre fáceis de honrar. será que também agora olhas para o fragmento nublado que serve de telhado para o abismo entre prédios? peça que falta no quebra-cabeça de algum deus indeciso . caminhamos. de um modo novo vamos a um encontro feito todo de transpassos. dois filmes no mesmo projetor. todos os filmes no mesmo projetor.
.b, só agora percebo. sempre estivemos acompanhados nesses passeios de descontinuidades geográficas e temporais e continuidades emocionais. sempre estivemos habitados por essas cidades e seus fluxos. suas gentes idosas ou meninas. suas preces esgarçadas (como aquele abraço que o tempo chamou de saudade). sempre estivemos em parte nodosos em parte concretados. sempre fomos quem corre pelos metrôs e quem dorme no cinema. de certo modo aprendemos a entender uma avenida como uma passagem para as ilhas que todos fazemos imergir sem que saibamos. até chegar alguém que nos queira arquipélago. erramos nos ermos náuticos sinalizados por vendedores ambulantes e velhos cansados e office boys stressados reiventando rictos de múltipla presença em bancos e cartórios.
.sempre tantos, b. sempre todos, b. agora mesmo – enquanto conversamos no desacerto de tempo entre o que escrevo e o que lês – estamos aninhados na multidão que ergue sua alma para as alturas com a fome apontando para o que quer que seja que despenque até lhe fartar.
.b, a chuva voltou. mais forte. me chama pro jorro das bicas. me conta das saídas que encontram os velhos e os moços para escapar de seus jogos úmidos. a chuva me conta das ladeiras que desejou achar quando caiu sobre as costas de quem não estava mais lá. corri pelas ruas para alcançar a chuva. sentei na calçada e desfiz minhas mágoas. dormi até sonhar com o que há entre minha cidade e tua cidade quando não queremos mais ir embora.
.vi a moça bonita com o vestido molhado. vi o menino de rua patinando no esgoto que vomitava embalagens e latas. vi uma velha rir sozinha olhando para algo que não pude enxergar. o invisível no olhar dela me abriu todas as janelas. vi os carros embaçados ocultando passageiros de um mesmo perdido plano de festejos entre lamentos. como chora a chuva nos pára-brisas! consolos de partituras de metrônomo. cadências de nunca mais.
.já pára novamente a chuva, b. talvez seja hora de mais uma vez te deixar. ou antes desalecerar partículas e continentes. reencontrar o tempo suspenso que diz que toda cidade é única mas também é o mesmo lugar. onde se ama ou se silencia. onde se cumpre ou se adia. onde se falha ou se acerta. onde se está ou se alheia.
.uma cidade. toda cidade. um corpo que nos excede e propõe desassossegos acesos. toda cidade nos é. toda cidade que tenho pra te dar é essa veia aberta de avenida onde quero ter ver passear. traz um livro inesquecível. um cacho de riso de espiral ascendente. um largo acolhido como filho no colo dos aconchegos. mapas afetivos. becos de abismos. vielas crepusculares – onde as sombras brincam de virar girafas. espelhos de vitrines em permanentes caleidoscópios auto-referentes. traz um algo mais que agora por certo eu esteja esquecendo de citar (bem sabes como minha memória anda bêbada de tanto lembrar). nada mais vai nos faltar? ah, quase me esqueço: traz a cidade que vamos inventar.
.amor.
.somos nós e somos sempre.
.d.
– designer, escritor e fotógrafo, vive e trabalha em fortaleza-ce. sempre às voltas com a guerrilha (arte digital, quadrinhos, vídeo-arte), acumula milhas em projetos que movem mentes, lugares e corações. ainda conspira coisas belas e aprende a ler nuvens e como ser educado por uma filha chamada sofia. palavras-chave: imagem, texto, intensidade.< http://vestigios.wordpress.com/ http://www.fotolog.com/daimon http://www.flickr.com/photos/paulo_amoreira/